sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

MATURIDADE


Sem drama: idosos celebram todos os dias, a vida no Lar de Velhinhos Nossa Senhora das Graças

A idéia era mostrar o Natal de senhores e senhoras de idade que têm pouco contato com a família, no entanto, chegando ao local, vê-se que a sensibilidade pode ser despertada, não pela tristeza, mas sim, pela alegria com que eles se adaptam a novas pessoas e de como contam sua história
Por Larissa Mazaloti


No bairro Vila Militar de Palmas – Paraná, uma construção que lembra uma igreja é cercada por um amplo jardim, com árvores de diversas espécies e flores que colorem o cenário. Lá estão reunidos 34 senhores e senhoras, alguns com ar nostálgico, outros mais exaltados, mas na maioria, portadores de um sorriso de quem já viu muita vida acontecer. É o Lar de Velhinhos Nossa Senhora das Graças.
A organização é mantida em parte pelo CPEA (Centro Pastoral Educacional e Assistencial Dom Carlos) que arca com custos de funcionários e despesas comuns a qualquer residência, como água, luz, telefone, gás, entre outros. Além disso, a manutenção do local recebe recursos municipais, bem como a valorosa contribuição da comunidade que doa alimentos, roupas e outros donativos. Algumas destas doações são fixas, enviadas periodicamente.
Quebrando a expectativa de ser encontrada sob o hábito, vestimenta religiosa comumente usada por padres e freiras, a coordenadora Irmã Celma Augusta Jacob usa calças jeans, blusa e cabelos soltos. Ela não está quebrando nenhuma regra, pois explica que pertence a congregação Nossa Senhora da Consolação, a qual aderiu a livre escolha do uso do hábito. Irmã Celma saiu de sua casa na terra natal Areado, no Sul de Minas, há algum tempo e não economizou viagens para seguir a vocação cristã. Antes de Palmas, ela estava em Moçambique, na África, onde trabalhava na área da saúde.
Segundo a Irmã, o carisma de sua congregação não está voltado apenas para um segmento, mas sim, atende a todo tipo de atividade social. Além disso, ela ressalta a autonomia das congregações diante da Igreja. Ela relata que o convívio entre os idosos é agradável e pacífico. Para ela, é a nova família que ganhou. “Sinto saudades de casa, mas aqui, passamos a viver a vida dos velhinhos e partilhamos das alegrias e de algum sofrimento que eles têm”, conta.
Para organizar o local e cuidar dos abrigados, Irmã Celma conta com mais quatro irmãs, nove funcionários durante a semana e três nos fins de semana. Durante a visita ao asilo, pode-se sentir a dedicação destas pessoas, ajudando os internos na dificuldade de alguns em caminhar e desenvolver outras funções que muitas vezes o corpo já não responde. No lanche da tarde, risadas e brincadeiras faziam intervalo entre um gole e outro de chá.
Os idosos do Lar de Velhinhos Nossa Senhora das Graças são aposentados e os benefícios também contribuem para o funcionamento do lugar. “Aceitamos aqueles que não recebem aposentadoria, mas acreditamos neste direito deles, por isso buscamos os recursos quando necessário”, salienta Irmã Celma. De acordo com ela, as famílias que internam os idosos argumentam falta de condições, em sua maioria, financeiras, no entanto, quando constatado que é possível cuidar da pessoa de idade em casa, a coordenação do asilo faz o possível para que isso aconteça. “Apesar de todo o conforto oferecido, ter que abandonar gostos particulares, como na alimentação por exemplo, para comer o que todos comem e passar a morar num local diferente é uma violência para o idoso”, explica a coordenadora.
Infelizmente, ela revela que apesar do propósito das famílias em visitar frequentemente seus idosos, com o tempo e a adaptação a ausência da pessoa, os velhinhos acabam por não mais ter contato com filhos, netos e outros parentes. Esta é uma realidade da maioria, no entanto, mesmo sendo raro, há alguns que semanalmente recebem o carinho dos familiares.
Os que moram no Lar de Velhinhos recebem atendimento de fisioterapeuta, assistem à missas, fazem orações em conjunto e gostam das rodas de chimarrão. Alguns preferem ficar na varanda fechada, na parte da frente do asilo, já outros gostam de caminhar e sentar nos bancos da praça, ao ar livre, na parte de trás.
No Natal a rotina muda, e o jantar sai um pouco mais tarde. É a ceia que marca a passagem do dia 24 para 25 de dezembro. Todos fazem seus pedidos e ganham presentes. Alguns familiares vão até o asilo e participam do Natal com seus velhinhos, outros não.

Lucidez e crítica aos 78
Ao chegar ao Lar de Velhinhos Nossa Senhora das Graças, três simpáticos idosos estavam tomando o sol do pós meio-dia na varanda. Ao entrar, logo fui convidada a me sentar, com um gesto silencioso do seu Otacílio Aires Machado, um senhor magro, com cabelos jogados pro lado e um óculos de lentes grossas.
Alguns minutos depois, a voz mansa me pergunta se sou “daqui mesmo” de Palmas. Ao afirmar que sim, logo ele pergunta sobre minha família e começa um relato quase histórico sobre meus antepassados, que logo se estende para um papo sobre toda a cidade.
Um dos primeiros aspectos comentados por seu Otacílio é o crescimento e as mudanças no bairro Lagoão e com certa exaltação reclama a falta de um hospital, pois segundo ele, pelo número de habitantes, o bairro merece. Com isso, eu que esperava para entrevistar alguém designado pela coordenação, ao invés de escolher, me senti escolhida e comecei a primeira entrevista.
Ao longo da conversa, quando dei por mim, estávamos apenas os dois, tagarelando sem parar e o assunto já era política. Por surpresa, o esclarecimento sobre contexto político no Brasil não terminava em relatos do passado, como o de que Getúlio Vargas foi o presidente que “endireitou o País”, ou o de que em Palmas, os homens da política sempre foram revoltosos, disputando na força e nas balas, o poder. “Eram inúteis que queriam sempre ganhar a todo custo”, esbraveja. O seu conhecimento sobre o que acontece na política é atual e crítico. Para falar do governo Federal, ele ouve a Voz do Brasil diariamente e acredita que o presidente Lula trabalha para os pequenos. “O Lula cortou as asas dos tubarões”. Sobre o município, seu Otacílio se mostra descontente e acha que falta reivindicação do prefeito para o Estado e para o governo federal para que quem mora debaixo de lona seja atendido. “É preciso que todos nós olhemos para os pequenos”, diz.


Sua história
Seu Otacílio nasceu em 1929 do segundo casamento de sua mãe, que ficou viúva antes do nascimento dele. Sem conhecer o pai, ele viveu pouco com a mãe que, segundo ele, extraviou os filhos. Antes dos nove anos foi dado ao padrinho cuja mulher teve um bebê nesta época. A primeira experiência pessoal que ele me conta foi um acidente no fogão a lenha. “A madrinha foi trocar os panos do bebê e o leite estava esquentando no fogão. Quando vi que estava derramando, subi num banquinho para afastar a vasilha pra uma parte mais fria, quando ela viu, achou que eu estava pegando para tomar e como castigo, esfregou minha mão na chapa quente do fogão”, relembra. Foi este o episódio que fez com que a madrinha o jogasse porta a fora, como ele mesmo conta.
Ele voltou para a mãe e passou a ajudar nos trabalhos de uma estrebaria que se localizava onde hoje são pontos pertencentes ao centro da cidade. Nesta época ele tinha entre nove e dez anos, de manhã cedo entregava o leite, em seguida ia pra escola e na volta recolhia os vasilhames vazios. Estudou até o quinto ano no Grupo Escolar, para continuar, ou ia para o colégio das irmãs ou para outra cidade, mas não foi o seu caso. Ele lembra também do início da organização do grupo de Escoteiros em Palmas.
Seu Otacílio, aparentemente enfraquecido pelo tempo já foi jovem forte, servindo a Cavalaria de Palmas e depois, trabalhando em tropas de criação e companhias de barragens e construção de estradas, percorreu diversos lugares do Brasil, indo pra São Paulo e até Belém do Pará.
Apesar de não ter nenhum filho, ele casou-se duas vezes. A primeira, com uma viúva que já tinha três filhos e depois no Rio Grande do Sul, de onde voltou com madeireiros que vieram montar serrarias no município.
Depois de uma certa idade, sem aceitação no mercado de trabalho, seu Otacílio adoeceu e ficou chateada com a situação do desemprego. O último patrão o levou para o Lar de Velhinhos, para o qual o idoso só tem elogios. Seu Otacílio passa o Natal com os colegas de asilo, sem a presença da família.

Apaixonada aos 60
Pele negra, olhos castanhos envolvidos num misterioso contorno azul, esmalte nas unhas, lenço no pescoço, cabelos bem penteados, anéis e pulseiras. Dona Maria de Jesus Ferreira é o exemplo de vaidade aos 60 anos. E foi ela, com um pouco de custo, que entrevistei depois do lanche da tarde. Renitente, ela disse que não tinha nada pra falar, mas a empatia entre nós logo fez com que ela se soltasse.
O marido de dona Maria faleceu e deixou a esposa com três filhos. Se antes ela trabalhava lavando roupa para fora, sem o marido, precisou arrumar outras atividades para juntar com a pensão deixada pelo marido, que era guardião. Teve a ajuda da família Dalla Costa, de Palmas, para a qual prestou serviço de limpeza e por causa da amizade construída, ganhou uma casinha e vivia bem até que o efisema pulmonar forçou os filhos a internarem no asilo, já que não tinham mais condições de dar os cuidados necessários.
Diferente de seu Otacílio em várias coisas, dona Maria recebe visita todos os domingos e vai também passear na casa da filha. A voz delicada não fala de política, mas fala de amor. Amor entre homem e mulher, o amor entre ela e o seu Araí, um senhor distinto e educado que não pôde conversar comigo para não perder o terço, no Santuário. O romance começou com um convite dele para que tomassem chimarrão juntos. Ela aceitou, ficou com medo que as Irmãs não gostassem, mas o casal recebeu o maior apoio. “Ele é um homem bom, eu também sou uma pessoa boa, se nos gostamos, não tem nada de mal”, se justifica. Ela conta que eles conversam muito, que fazem o terço juntos e é claro, tomam sempre o chimarrão sentados um, ao lado do outro. A intenção de dona Maria é casar e levar seu Arai pra uma casa, que seu filho quer dar de presente. “Nessa altura da vida, a gente precisa de companhia”, afirma.
Dona Maria é doce, tem sonhos e é prestativa. Ela ajuda na limpeza da cozinha do Lar de Velhinhos, já que o tratamento médico melhorou muito sua saúde. “Se isso eu posso fazer, por quê não ajudar?”, pergunta ela.
Ela vai passar o Natal no asilo, com os colegas e com o seu Araí, é claro. Ela gostou de comemorar o nascimento de Jesus no Lar de Velhinhos e conta que no ano passado ganhou uma saia muito bonita e uma blusa. Os pedidos este ano, são um “radiozinho” e um vestido, “se der”. Na passagem de ano ela vai para a casa da filha, mas já diz que vai sentir saudades do namorado.
Nossa despedida simbolizou o tom de carinho de toda a conversa. Ganhei duas pulseiras dela em troca de uma minha, que ela gostou, além do convite insistente para que eu voltasse. Eu voltarei, dona Maria!

Publicado no Jornal Folha de Palmas, de 21 a 27 de dezembro de 2007.

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